quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/5/2004 08:07:14 AM

FERNANDO


Eu me acuso para diminuir o rigor do destino. Não sei como te dizer. O novo e o antigo, o recente e o velho surgem juntos. Minha dificuldade é desembaralhar os anos. As datas de minhas lembranças são mais a intensidade do que vivi do que as balizas do calendário. Não entendia tua expressão: "Não fiques no vento". Brincava com teu jeito: o vento mordia, latia? Teus cuidados tão justos e tão atentos comigo, recomendando que levasse um casaco para não me indispor ao frio. Não me lembro de nenhum outro homem se preocupando com meus ombros. Eu estou no vento e não posso me cobrir. Tenho inveja do amor que me dedicaste. O amor sempre foi uma necessidade. No teu caso, ele sobrava, como um luxo. Nunca precisaste provar que me amavas. E eu, insegura, a fazer propaganda dos meus gestos. Somos honestos com o que sentimos, acho que honestos demais. Não aceitamos o troco errado. Devolvemos o que não merecemos. Desconfiamos da alegria e perguntamos se não foi um engano. Se eu te ofendi é porque não acreditava em mim para te merecer.


Não, não te olho com pena e resignação. Ninguém conheceu teu desprendimento, muito menos a tua ironia. Não saber como te dizer é já dizer. Não queria te contar que te acompanhei até aqui. Poderias não suportar. Não quero que partas e não sei como conter o sangue. Estou de mãos dadas contigo, em outra cama. Escrever é estar em coma. Ainda não tens consciência do acidente de carro e que fiquei exatamente como estás. Não adianta rir de nervoso - a tua situação ainda é pior do que a minha. Aquele caminhão atravessando o sinal fechado e nos tomando de frente. Duas camas de solteiro. Nunca dormimos em duas camas de solteiro. Penso que serão dois lençóis a trocar inutilmente. Duas camas de solteiro não formam uma de casal - é diferente. Um vizinho do outro e minha mão estendida como uma mesa. Uma mesa sem abajur. Os dois em coma, vegetando como animais apaziguados. Animais brancos, pálidos, longe de suar, avessos ao mormaço do mundo. Ninguém para contar a história ou dizer o que houve. Escrever é estar em coma. Anota-se o pensamento antes de falar. Toda palavra passa a ter a largura da escrita, não a altura do som. Um pássaro apanhado durante a árvore do vôo. O estranho é que me respondes. Vejo que te escondeste muito bem dentro de mim durante todo esse tempo para sair de repente. Eu te levei junto sem perceber. Devo estar feia, não faço as unhas há semanas, vestindo essa roupa larga de grávida. E pensar que jamais tocaste na hipótese de filhos e aqui vive ladeado de aparelhos, que se assemelham a um parque de diversão. E pensar que falavas que partirias no auge para não ser esquecido rapidamente. E pensar que ao menos não sentes alergia das flores depositadas ao teu lado. Desculpa-me, canso-me com facilidade. Não sei exatamente o teu estado. Meu amor está ficando póstumo.


Beijos

Aline

Nenhum comentário:

Postar um comentário