quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/30/2004 10:25:50 AM

Deu no site Weblivros:


PEDRAS QUE PENSAM

Fabrício Carpinejar*


O aforismo, espécie de máxima e provérbio, não é uma sentença que condena, mas que liberta. Exorciza a verdade em golpes súbitos, em períodos mínimos. Ponto de encontro entre a idéia e a intuição. Apresenta uma natureza híbrida entre a poesia e a filosofia. Tem da poesia o ritmo e a captação dos contrários, enxergando relações entre objetos e seres díspares. Da filosofia, desde Heráclito, guarda o alentado poder de interrogar o espanto. A partir dessa breve forma de pensamento, os moralistas clássicos como Pascal e La Rochefoucald fizeram toda uma tradição do pessimismo, expandida à perfeição pelas fagulhas de Nietzsche, silogismos amargos de Cioran, fábulas concisas de Kafka e críticas ácidas de Karl Kraus ("Não é a amada que está distante, mas a distância que é amada").


No Brasil, por exemplo, além da série de frasistas memoráveis como Antonio Maria, Otto Lara Resende e Nelson Rodrigues, pode-se encontrar o aforismo em "Discípulo de Emaús", de Murilo Mendes, com uma tendência poética muito próxima do versículo e com uma carga filosófica de visível viés católico. "O difícil não é encontrar a verdade: é organizá-la." Outro praticante, ainda que informal, foi o gaúcho Mario Quintana. Compôs um coleção de epígrafes em "Caderno H", com a roupagem leve de crônicas e chapéu pontiagudo do humor. Uma de suas pérolas vem de uma dolorosa interrogação: "Por que será que a gente vive chorando os amigos mortos e não agüenta os que continuam vivos?". O campeão de audiência aforística ainda é Millôr Fernandes. Propôs um dicionário poético em "A Bíblia do caos", recosturando o significado das palavras, procurando extravagantes sinônimos e acepções, definindo o indefinível jeito brasileiro de não pagar o apocalipse depois de curtir a festa. Seus textos exercem uma influência tão decisiva que tomam ares de autor anônimo, absorvidos pela cultura urbana. Quantas citações de Millôr, como "no princípio era a verba", não se transformaram em provérbios populares?


Mostrando a exuberância dessa expressão, o poeta espanhol, Adolfo Montejo Navas, radicado no país há dez anos, atinge alta condensação em "Pedras Pensadas" (Ateliê Editorial, 2002, 123 páginas), traduzido com luminosidade por Sérgio Alcides. Ao lado de "Da Frágil Sabedoria" (Quasi, 2001), do português Casimiro de Brito, demonstra o vigor da língua portuguesa ao gênero.


O autor reúne profecia, observação e conceito em 660 aforismos, ampliando seu livro anterior, Inscripciones (Madri, 1999), que continha 425 aforismos. Seus pequenos retratos relâmpagos, velozes epigramas, exercem uma influência decisiva. Expõe um dos fundamentos do aforismo: a força de persuasão. O leitor fica viciado no estranhamento dos costumes e na capacidade de extrair o deslumbramento da ordem mais corriqueira. Em Navas, o cartão de visita é um epitáfio; o calendário, um poema visual; o ironista, um amolador de vocábulos, e o suicida, aquele que adianta o relógio demais.


O livro traz versos avulsos, autônomos e com uma capacidade de resumir a vida em duas linhas. Desenvolve o cinismo ("Para ter coração é preciso ter estômago"), o microconto ("Uma mosca para cada movimento de sobrancelha"), o lirismo ("Toda a esperança na chuva, como alguns cachorros"), a tirada infantil ("As zebras e os tigres parecem recém-pintados"). Dificilmente erra o alvo. O aforista coloca uma única bala no revólver e tem que resolver a eternidade com ela. O despojamento está muito próximo do exagero. Aumenta-se a potência metafórica para dizer pouco. Exagera-se (com o uso recorrente do "sempre" e do "nunca") para desfalcar. Convence-se sem a necessidade da repetição. Navas segue o rigor do francês René Char ou do alemão Hölderlin, conceber o estado de espírito externo pelo desespero de dentro, permitindo a paisagem sentir o que o coração pensa. Ou, como mesmo define, "ver dentro das palavras o que está fora delas". Impressiona a regularidade da obra, que nunca oscila para o prosaísmo, mantendo-se firme no terreno poético de observação pura. Poesia de sabedoria, que permite reflexões livres de credos ao exercitar o ceticismo. Há um rumor de inconseqüência para se atingir o novo. Na falta de ponte, um necessário salto no escuro. "A loucura nunca cumpre o que promete". Citações de Orides Fontela, Manoel de Barros, Teixeira de Pascoaes, Max Jacob, Elias Canetti, entre tantos, aparecem no decorrer dos textos como um modo de homenagem, reverberando algumas das influências do espanhol. Seu talento é ampliar e distorcer os hábitos com outras funções. Suas máximas são polissêmicas, não encerram o assunto, abrem inéditas possibilidades da percepção. "A vaidade nunca mata o bastante." As epifanias debocham dos minutos de sabedoria, da seleção de frases célebres, dos condimentos de aeroporto, das frases prontas de microondas de políticos e celebridades. Busca o conhecimento pela experiência; o caminho, pelo erro; a perfeição, pela falha; o impossível, pelo real.


'Pedras Pensadas" significa um álbum de fotografias de rua. Imagens feitas ao acaso, flagrando a ebulição de tipos e personagens, insultos e convicções. O mundo é perfurado com ênfase. Antes mesmo da terra, a água jorra da própria sede.


Alguns aforismos de Pedras Pensadas:


* O hipocondríaco vive de indultos.


* A fidelidade sempre suspeita da lealdade.


* As pedras estão sempre olhando.


* Aproveita a insônia para nascer.


* Estamos doentes de eternidade.


* Cada viagem é uma idade.


* Escreve-se o que se esconde.



* Fabrício Carpinejar é poeta e ensaísta, autor de Caixa de sapatos (2003) e Cinco Marias (2004), entre outros. [Especial para Weblivros]


:: Pedras pensadas, de Adolfo Montejo Navas, tradução de Sérgio Alcides. Ateliê Editorial, São Paulo, 128 p., tel (11) 4612-9666, formato 14 x 21 cm.

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