quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/29/2004 10:45:26 AM

DICIONÁRIO É UM CEMITÉRIO DE AUTOMÓVEIS


Da série MINHA INFÂNCIA NÃO ATRAVESSA A RUA SOZINHA

Arte de Arthur Bispo do Rosário


Fabríco Carpinejar


Minha avó chamava radiografia de chapa. Chapa servia também para dizer dentes postiços. Ou amigo. Ou placa de carro. Somando os sentidos, pensava que minha avó fazia radiografia dos seus dentes postiços, como quem arruma um amigo, e numerava a dentadura como chapa de carro. Eu me intrigava com as palavras de duplo emprego. Elas trabalhavam dois turnos para sustentar o Aurélio. Não tinham folga. Lavavam o sanitário com esponja e balde. O Aurélio ficava estirado na mesa de meu pai. Todo esmiolado, ele próprio nunca se leu. Só mijava sentado, uma vergonha para sua masculinidade. Eu sempre que lia alguma palavra no Aurélio aumentava minha dúvida. Havia mais sinônimos do que explicação. Poderia escolher o que eu não queria, falar o que não entendia. Criança não precisa de dicionário, criança não quer ser ambígua. Criança quer ser direta. O dicionário interessa para confundir. Para esconder algo da compreensão. O Aurélio era ateu, substituiu o lugar da Bíblia em casa. A mãe não era do dicionário. Mãe acreditava em versículos. Os versículos são o horóscopo do religioso. Abre-se uma página ao léu e ele verifica o que vai acontecer no dia. Palavras preferem a intuição, mesmo equivocada. A intuição é adivinhar a palavra pelo som, marcar as bainhas com uma agulha. Busca-se a calça no dia seguinte ou nunca. A palavra vigarista é acertada. A viga quebra no meio.

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