quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/26/2004 11:42:45 AM

Da série MINHA INFÂNCIA NÃO ATRAVESSA A RUA SOZINHA

Gravura de Arthur Bispo do Rosário


O mundo em que vivo não é o mundo que eu quero, mas o que preciso. Na esquina de minha infância, um homem batia seu queixo como uma máquina de escrever. Ele estava enlatado em uma cerca, lata de sardinha. Não havia abridor grande para ajudá-lo. Galinhas voavam ao seu lado, espantadas com o barulho das teclas dos dentes. Com o boné virado, ele ria como uma assombração. Assombrava e babava. Eu tinha medo dele, depois tive compaixão, hoje eu acho que ele era eu. Toda criança que passava chamava de cachorro, todo cachorro, de criança. Um colega me disse que ele assistia a vida em preto e branco. Sofria da doença da cor. Ele morava perto do campo de futebol. Usava tênis sem cadarços e meias. Ficava zanzando na grade, gritando cachorro e criança, criança e cachorro. Era menos perigoso do que o vizinho da outra esquina, com um tapa-olho de pirata debaixo dos óculos. Havia uma parada de ônibus na frente de sua casa. Os que sentavam na murada eram apedrejados por uma funda. Homem já feito, atirava as pedras pelas frestas da veneziana. A polícia nunca o encontrou. Sua péssima pontaria quebrou o vidro de um carro. Mudaram a parada de lugar. Mudaram meu bairro de lugar.

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